A Fundamentação da
Metafísica dos Costumes de Immanuel Kant é, em resumo, a busca e a fixação
do princípio supremo da moralidade, o que constitui só por si no seu propósito
uma tarefa completa e bem distinta das demais investigações morais. O trabalho
de Kant é metafísico no que ele investiga a ideia e os princípios de um objeto
que não pode ser descoberto no reino da experiência, chamado vontade pura. A razão serve a propósitos
que são maiores que a sobrevivência e a felicidade individuais, e tem por
função trazer uma vontade que é boa em si mesma por oposição ao bem por algum
propósito particular. Os requerimentos morais estão baseados no padrão da
racionalidade que Kant nomeia de Imperativo
Categórico. É este o princípio fundamental da moralidade, que nada mais é
do que a lei da vontade autônoma. Segundo Kant, a lei moral, na sua pureza e
autenticidade, não deve buscar em nenhuma outra parte senão em uma filosofia
pura, e esta (Metafísica) tem que vir, portanto, em primeiro lugar, e sem ela
não pode haver em parte alguma uma Filosofia Moral[1]. A obra
irá se dividir em três seções:
1. Primeira Seção: transição do conhecimento moral da razão
vulgar para o conhecimento filosófico.
2. Segunda Seção: transição da Filosofia Moral popular para
a Metafísica dos Costumes.
3. Terceira Seção: último passo da Metafísica dos Costumes
para a Crítica da razão pura prática.
As duas primeiras seções são o caminho analítico do
conhecimento vulgar para a determinação do princípio supremo desse
conhecimento, a última seção é sintética, fazendo-se um exame deste princípio e
das suas fontes para o conhecimento vulgar onde se encontra a sua aplicação.
Primeiramente, devemos entender que a razão nos foi dada com
faculdade prática com o intuito de produzir uma vontade boa em si mesma. O
problema consiste em verificar a possibilidade de tal vontade sem um interesse
envolvido. Tal vontade não pode ser extraída de exemplos empíricos, pois por
mais desinteressados que estes pareçam não podemos ter deles uma certeza que
formule uma regra geral da ação moral. A filosofia moral deve observar a
necessidade absoluta da obrigação em sua análise e defesa do pensamento moral,
ela deve ser inteiramente a priori.
Para isso, é crucial, em ações que expressam uma boa vontade, que a estrutura
motivacional do agente seja arranjada para dar prioridade às considerações do dever sobre todos os outros interesses.
Segundo Kant, dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei[2].
Este dever reside na ideia de uma razão que determina a vontade por motivos a priori, ou seja, anteriores a toda a
experiência. Para que possamos expressar um dever é preciso formular um
mandamento da razão e este mandamento é chamado de imperativo. De maneira geral, os imperativos se dividem em[3]:
(i) hipotético – representa a necessidade prática de uma
ação possível como meio de alcançar outra coisa que se quer.
(ii) categórico – representa uma ação como objetivamente
necessária por si mesma, sem relação com qualquer finalidade.
Só o imperativo categórico tem o caráter de lei prática, ao
passo que os hipotéticos se podem chamar em verdade de princípios da vontade,
mas não leis. O imperativo categórico não se relaciona com a matéria da ação
(meio) nem com o que deve resultar (fim), mas com a forma e o princípio de que
ela mesma deriva, é, pois, o imperativo
da moralidade. Ele pode também ser assim definido: “Age apenas segundo uma
máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”[4].
Essa é uma máxima do dever kantiano que comporta a sua Metafísica dos Costumes
como determinante não do que acontece, mas das leis do que deve acontecer. De
modo que podemos falar em uma diferença específica entre os imperativos
hipotético e categórico que é a renúncia a todo interesse no querer por dever,
pois para Kant só há liberdade quando agimos somente por dever sem nos prendermos a qualquer fim ou interesse.
Mas é possível falarmos de uma vontade inteiramente livre?
Para desenvolvermos o tema da liberdade em Kant, é preciso
compreender a relação que a liberdade tem com o princípio da autonomia da
vontade. Este é o conceito segundo o qual todo ser racional deve considerar-se
como legislador universal por todas as máximas da sua vontade para, deste ponto
de vista, se julgar a si mesmo e às suas ações. Isto leva a outro conceito
muito fecundo que lhe anda aderente que é o de um Reino dos Fins[5]. O
reino dos fins nada mais é que um ideal que relaciona todos os seres racionais
em um todo do conjunto dos fins. A moralidade é a única coisa que pode fazer de
um ser racional um fim em si mesmo, de modo que todo ser racional nunca deve
ser tomado como meio, mas somente como fim em si mesmo. A moralidade é, pois, a
relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação
universal possível por meio das suas máximas. Tomado desse modo, o princípio da
autonomia é o único princípio da moral e este só pode ser expresso por um
imperativo categórico. A heteronomia é o princípio contrário à autonomia e se
dá quando o objeto que dá a lei à vontade pela sua relação com ela. Esta
relação só pode tornar possíveis imperativos hipotéticos: devo fazer alguma
coisa porque quero qualquer outra coisa[6]. Para
salvar a liberdade humana, Kant deve dar uma resposta ao determinismo, em que o comportamento humano não seria mais do que
uma máquina biológica, determinado pela causalidade da Natureza. Ele não
rejeitou completamente o determinismo, já que estava comprometido com a visão
da física moderna de que todas as coisas são causadas por forças mecânicas, mas
para tornar a liberdade possível no homem, terá que formulá-la independente de
todas as coisas empíricas e da natureza em geral. De maneira que se nós
fundarmos a moralidade na experiência, não poderemos providenciar a
possibilidade da liberdade humana. A liberdade não deve ser submetida às leis
naturais, nem é desprovida de lei, mas tem antes de ser uma causalidade segundo
leis imutáveis. Desse ponto de vista, a autonomia e a liberdade da vontade são
o mesmo, pois a vontade livre é a mesma vontade submetida às leis morais[7]. Mas
como é possível o homem seguir inteiramente a lei moral e ter uma vontade
livre, se ele também está submetido às determinações da natureza? Eis a
necessidade de Kant de distinguir propriamente em seu sistema esse dois pontos:
Segue-se
por si que por trás dos fenômenos há que admitir e conceder ainda outra coisa
que não é fenômeno, quer dizer, as coisas em si, ainda quando, uma vez que elas
nunca nos podem ser conhecidas senão apenas e sempre como nos afetam, nos
conformamos com não podermos aproximar-nos bastante delas e nunca podermos
saber o que elas são em si. Daqui tem de resultar a distinção, embora
grosseira, entre um mundo sensível e um mundo inteligível[8].
A distinção entre mundo sensível e mundo inteligível é
necessária a Kant para que ele possa determinar o local da liberdade junto a
uma razão pura prática, pois assim como o homem não é capaz de conhecer a coisa
em si, mas somente na medida em que for objeto da intuição sensível, isto é,
como fenômeno; da mesma maneira, o homem não pode conhecer-se tal como ele é em
si, mas somente como fenômeno. No entanto, não podemos ignorar que, para além
da composição fenomênica pela qual nos concebemos, há uma outra coisa que está
na base desta, que é o ‘Eu’ tal como ele é constituído em si mesmo. A razão nos
mostra sobre o nome de ideias uma espontaneidade tão pura que ultrapassa de
longe tudo o que a sensibilidade pode fornecer ao entendimento, de modo que se
faz a necessidade da distinção entre mundo sensível e mundo inteligível. O ser
racional deve ser tomado sobre dois pontos de vista[9]:
(i) enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais,
de modo que ele é condicionado e obrigado por essas leis.
(ii) enquanto pertence ao mundo inteligível, sob leis que,
independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na razão e,
portanto, é livre por ser independente de causas determinantes (condicionadas)
do mundo sensível.
O ser racional enquanto pertencente ao mundo sensível está fadado ao princípio da heteronomia e aos imperativos hipotéticos, por ser
determinado pelas leis naturais; enquanto pertencente ao mundo inteligível está
ligado ao princípio da autonomia enquanto legislador universal de todas as
máximas da vontade. Os imperativos categóricos são possíveis porque a ideia da
liberdade faz de mim um membro do mundo inteligível e, se fosse somente desse
jeito, todas as minhas ações seriam conformes à autonomia da vontade, mas como
ao mesmo tempo me vejo como membro do mundo sensível, essas minhas ações devem ser conformes a esta autonomia[10].
Como somos seres racionais que partilham dos dois mundos e nada podemos
acrescentar aos objetos senão o que o sujeito pensante retira de si mesmo, não
há como falar em contradição, já que não podemos renunciar nem ao conceito da
natureza nem ao da liberdade.
Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes
[1] KANT, I. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Tradução de Paulo Quintela. São Paulo, Abril Cultural, 1980, Prefácio, p. 105.
Demais citações à obra serão abreviadas por Fundamentação
seguidas da seção e da página da tradução.
[2] Fundamentação, 1a Seção, p. 114.
[3] Fundamentação, 2a Seção, p. 124-5.
[4] Fundamentação, 2a Seção, p. 129.
[5] Fundamentação, 2a Seção, p. 138-9.
[6] Fundamentação, 2a Seção, p. 145.
[7] Fundamentação, 3a Seção, p. 149.
[8] Fundamentação, 3a Seção, p. 152.
[9] Fundamentação, 3a Seção, p. 154.
[10] Fundamentação, 3a Seção, p. 155.
BIBLIOGRAFIA:
ALLISON, H. E. Kant’s Groundwork for the Metaphysics of Morals. A Commentary. Oxford:
Oxford University Press, 2011.
JOHNSON, R. Kant's Moral Philosophy. The
Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2014 Edition), Edward N.
Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/spr2014/
entries/kant-moral/>. Acessado
em 27/03/2014.
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Tradução de Paulo Quintela. São Paulo, Abril Cultural, 1980.
________. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur
Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
SEDGWICK, S. Kant’s
Groundwork of Metaphysics of Morals. An Introduction. Cambridge: Cambridge
University Press, 2008.